“Porquê
ler?”
in Pure
Pleasure, de John
Carey (2000, Faber and Faber, pp. ix-xii e xv-xvi)
(Tradução: Paulo Lopes)
«Ainda haverá livros no final do próximo milénio? A
questão parece alarmista, mas é séria. Há mil anos, não havia propriamente
grande frenesim livresco. A maior parte das pessoas era iletrada. A impressão
tipográfica ainda não tinha sido inventada. Daqui a mil anos, as coisas poderão
ser tão remotas como tudo o que agora podemos imaginar. Na obra When the
Sleeper Wakes[1],
de H. G. Wells, uma personagem chamada Graham sai de um transe cataléptico no
ano 2200 e descobre que os livros são já obsoletos. Foram substituídos por
vídeos que passam em ecrãs de televisão (designados “cinetoscopes”) e rotulados
num inglês fonético tosco, que é o melhor que as pessoas logravam escrever.
(...)
Atualmente, a cisão entre pessoas que leem e pessoas
que não leem é a maior divisão cultural, transversal a idade, classe e género.
Nenhum dos lados compreende o outro. Para os não-leitores, os leitores parecem
pedantes. Para os leitores, o enigma é a que é que recorrem os não-leitores
para estimular as suas mentes. Se, no sobrepovoado mundo de amanhã, ler se
tornar uma boia de salvação para a sanidade de quase toda a gente, esta cisão
dissipar-se-á — o que seria uma ocorrência feliz, quer para as pessoas, quer
para os livros.
É errado pensar que o que ganhamos com a leitura nem
precisa de ser explicitado. Porque, se isso fosse assim tão óbvio, haveria mais
leitores. Na prática, explicar os proveitos da leitura a não-leitores é
extremamente difícil. E, além disso, suscita uma oposição articulada. Se
alegamos que ler expande os nossos horizontes mentais e nos permite
experienciar mais do que uma vida, os não-leitores respondem que essas são
justamente as vantagens que o cinema e a televisão oferecem. Por isso, o que
tem a leitura de especial?
O que tem de especial, estranhamente, é resultado de
uma imperfeição do tipo de comunicação dos livros por comparação com a da
televisão ou dos filmes. As imagens transmitidas na televisão ou nos filmes são
um veículo de comunicação quase perfeito, porque se parecem com aquilo que
representam. As palavras escritas não. São apenas marcas pretas no papel. Para
representarem algo, têm que ser decifradas por um praticante competente. Embora
leitores assíduos o façam instantaneamente, traduzir palavras impressas para
imagens mentais é uma atividade incrivelmente complexa. Envolve uma capacidade
imaginativa diferente da de outros processos mentais. Se a leitura acabar, esta
capacidade desaparecerá — e as consequências são incalculáveis. Porque a
leitura e a civilização cresceram juntas e não sabemos se uma pode sobreviver
sem a outra. A capacidade imaginativa exigida pela leitura está claramente
ligada, psicologicamente, com a aptidão para fazer juízos e a disposição para a
empatia. Sem a leitura, estas faculdades podem definhar. Transpor palavras
impressas para imagens mentais dá também à leitura uma dimensão mais criativa
que o contacto com outros meios de comunicação, pois nenhum livro ou página é
exatamente o mesmo para dois leitores diferentes. Não estou a advogar que o
leitor é realmente o ‘autor’ do texto — uma moda entre teóricos da literatura
do passado —, assim como um pianista que interpreta Chopin não é Chopin. Mas um
leitor, tal como um pianista, está empolgado numa atividade intensamente
criativa. Quem a pratica habitualmente constata o esforço que ela envolve assim
que a suspende. Quando se interrompe a leitura de um livro e se começa a ver
televisão, a impressão de relaxamento é imediata. Isso acontece porque uma
grande parte da mente ficou inativa. As imagens lampejam diretamente para o
cérebro. A nossa participação ativa não é requerida. Isto implica que uma
democracia composta maioritariamente por consumidores de televisão é árida, do
ponto de vista mental, quando comparada com uma democracia composta
maioritariamente por leitores. A democracia moderna passou da segunda para a
primeira na segunda metade do século XX.
Como muitas pessoas não leem livros, ler é considerada
uma atividade elitista. No entanto, não é mais elitista do que caminhar — ainda
menos, aliás, porque o estado paga-nos para aprendermos a ler, ao passo que
criar o hábito de caminhar fica entregue à iniciativa de cada um. E os livros
não são apenas para os endinheirados. Podemos requisitá-los de graça em
qualquer biblioteca pública. Algumas pessoas têm preguiça para ler ou caminhar,
mas isso não tem nada que ver com elitismo. É certo que há leitores
pretensiosos — e causam muitos danos. Eles insinuam, na opinião pública, a
associação da leitura à presunção e ao falso refinamento, e afastam assim
leitores potenciais.
(...)
Não me esqueci da personagem de H. G. Wells, Graham, e
o mundo aterrador em que ele acorda. Além de um mundo sem livros, é
tenebrosamente populoso. Densos magotes de gente berram e agitam-se em todo o
lado. Graham vai-se abaixo e pede, lamuriento, para ser levado para um quarto
onde possa estar só. Este cenário reflete o desânimo de Wells sobre a
demografia. (...) Mas suponhamos que Graham, encolhido no seu acanhado quarto,
com as ensurdecedoras multidões lá fora abalando as paredes, descobre,
esquecida num canto, uma pilha de livros empoeirados. Descobre, quando os
folheia, que são de um século que ele não conheceu (pois ele entrou no seu
transe comatoso em 1899). Esses livros, para o fazerem esquecer a sua aflição,
terão que ser verdadeiramente absorventes. Terão que abrir um caminho para a
sua espiritualidade mais profunda. Terão que fazê-lo rir, às vezes, e querer
continuar a viver. E terão, sobretudo, que ser capazes de encantar também
alguns dos quase iletrados bárbaros lá de fora, que, graças à influência de
Graham, poderão reintroduzir a leitura num mundo sem livros.»
É um teste severo — mas
felizmente qualquer biblioteca medianamente apetrechada contém livros que
passam este teste.
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